por Priscila Musa e Rafael Barros
As políticas de patrimônio, já tão bem sedimentadas em nosso país, possuem raízes fincadas em terrenos longevos,
onde valores seculares, assentados em um determinado constructo histórico e com uma implicada proveniência sagrada, apartavam o homem comum do objeto ao qual buscavam vincular. Sua arquitetura não pressupunha uma relação existencial entre as pessoas e as coisas, sendo seu valor elaborado de forma arbitrário e sedimentado a partir de narrativas altamente aristocráticas. Uma herança da qual intenta se libertar.
Talvez seja esse um dos elementos a explicar por que até hoje o desenvolvimento das ações patrimoniais encontram tanta dificuldade em estabelecer um próximo e atento diálogo com os bens aos quais se busca aplicar. E, da mesma forma, como os sentimentos e entendimentos relacionados a esse campo de atuação são tão confusos e encontram, ainda hoje, tamanha resistência. Disso é preciso destacar, em princípio, duas observações: todo diálogo só se torna efetivo no tempo e com um atento exercício de escuta, deixando-se impregnar e modificar pelo discurso do outro e que todo bem cultural se constitui de corpo e espírito, é feito de matéria, mas também de afetos, fantasmas, como os quais, antes de tudo, é preciso lidar.
O presente ensaio, tomado aqui enquanto um processo inacabado, uma experiência exploratória sobre um universo incógnito, pareceu percorrer despretensiosamente as ruas de um antigo bairro belorizontino, que acabara, em seu conjunto, de ser alvo de uma ampla ação protetiva. A partir da interação, do jogo de descobertas e estranhamentos, fotógrafos e fotografados (aqui casas e seus moradores), se deparavam com a falta de entendimento do que tal intervenção política poderia provocar para a vida das pessoas ou em relação a um pensamento acerca da cidade. Fora esse o sentimento expresso pela maioria das pessoas que assistiram a face pública de suas moradias pousarem para essas fotografias. Eles, os fotógrafos, também moradores, mais do que desvendar, pareciam perder-se por terrenos desconhecidos.
A cidade é constituída por um conjunto descontinuo de forças que vão desde a presença e a ausência do poder público, às imposições e ao ordenamento do austero poder econômico, à disciplina belicosa do poder “político”, e ao comando violento daqueles que detêm o poder de ordenar a visibilidade e a discursividade. O ordenamento dos corpos perpassa o ordenamento do território; o espaço da cidade é também recortado em diferentes partes disciplinadas pela divisão dos lugares. Em meio a esses jogos de forças um certo gesto insurgente, precipitado pela política patrimonial, pode ser apreendido, mesmo diante de tantas idiossincrasias. Ao lutar contra a força imperiosa do mercado, que busca a todo o instante apagar, outras formas de vida, várias lembranças podem atrever-se a resistir.
Antes e para além de qualquer traço arquitetônico monumental e/ou significativo, ou de qualquer elemento histórico relevante, a discurssividade a fundamentar a proposta de proteção do conjunto urbano do bairro de Santa Tereza buscou alinhavar a história de pessoas comuns e de suas existências também comuns que resistiram na permanência, não intocada, de uma vida de bairro um tanto mais comunitária do que individualizada. O que essa proposta permite entrever através das fotografias, se encontra na dimensão e na escala das casas, na presença das árvores e dos jardins, das janelas e das portas rente às ruas, das muretas baixas e dos gradis que permitem o atravessamento do olhar, fazendo-se diluir, em certa medida, as fronteiras entre o público e o privado, entre o eu e os outros.
Ao se destruir uma casa, e nos acostumamos a perder essa dimensão, nos lembra César Guimarães, “matam-se os espaço da experiência sensível encarnada nas coisas, todos os cheiros, os valores, as marcas... Uma casa guarda inclusive aquilo que se desprendeu dos nossos corpos, a gordura que sai das mãos da crianças quando elas brincam nas paredes, uma casa guarda isso”. A resistência (existência) pode ser esse legado e essa herança. A memória daqueles que nela viveram, dos afetos que nela de desprenderam e a experiência concreta e contemporânea de uma espécie de vida em processo de extinção.
É o que expôs Maria Rita Kehl no texto Olhar no Olho do Outro, sobre a cidade do homem comum. A megalópole São Paulo são 12 milhões de cidades.
São 12 milhões de mapas sentimentais recortados pelas pequenas histórias da vida de seus habitantes. Cada homem comum tem a cidade que seus passos percorreram e que a imaginação inventou. Cada Homem comum possui secretamente, na imensidão esmagadora da cidade, os nichos que acolhem suas lembranças: memórias do vivido, fragmentos da precária identidade que o homem urbano consegue constituir. (KEHL, 2008: 293)
A Belo Horizonte metropolitana são 3 milhões de cidades, mas não nos enganemos. A cidade metáfora do progresso já de início engoliu o pequeno Curral Del Rey, fez desaparecer os nichos de muitos homens comuns do arraial sem ouro que por sorte ou infortúnio logrou sediar a nova capital de Minas. Em um primeiro momento os casarões e avenidas da nova capital sobrepuseram pequenas ruelas ladeadas de casebres e vendas de onde se via a vida passar aos passos lentos dos cavalos. Para quem estava habituado aos três metros e meio de largura das ruas de Ouro Preto, agora era preciso atravessar c i n q u e n t a longos metros para chegar até a porta do vizinho da frente. Em um segundo momento algumas avenidas foram alargadas e uma série de altos edifícios atropelou árvores, dividiu parques e praças, esmagou os então pequenos casarões e o vizinho se mudou para l o n g e.
Em um terceiro momento novas avenidas se espraiaram sobre as casas daqueles que construíram a cidade, seus lugares comuns, pequenas centralidades de comércio local desapareceram junto com rios, córregos, lagoas, praças, o centro precisava chegar até a grande lagoa artificial, precisava chegar até a cidade industrial. E assim segue, são cidades se sobrepondo a outras cidades, não sem violência, enquanto muitas e muitos ainda não conseguiram subir a primeira fiada de tijolos, as avenidas já ganharam o segundo andar.
Existe uma cidade recalcada, sim. Cidade das histórias que ninguém contou ou que ficaram esquecidas. Cidade das casas demolidas, da memória destruída, das referencias perdidas(...) A cidade recalcada é a história calada de suas populações: das migrações, das lutas cotidianas, dos conflitos políticos, greves, passeatas, manifestações permitidas ou reprimidas. Uma cidade esquecida, tanto quanto são esquecidos seus habitantes infames”- homens sem publicidade, cidadãos sem fama. A cidade recalcada guarda o segredo de alguns banhos de sangue, injustiças, sofrimentos solitários e coletivos. E também de alguns dias lindos, algumas vitórias felizes, festas coletivas, momentos de distensão e de festa. (KEHL, 2008: 295)
Na escala da vida ordinária, à altura do olho, a cidade é condicionada, e não submissa, à já mencionada relação de poderes e forças das instituições públicas, do poder econômico, do poder político, do poder social, do poder midiático - mas é também o que dessas forças escapa pelas bordas, o que delas resta, o que delas se apaga, o que delas não nos alcança. Mesmo nas condições mais inóspitas e duramente inumanas, há alguns pedaços de cidade que resistem na potência de suas frestas, de suas trincas. Há algo que consegue romper o ordenamento do tempo, do espaço e do corpo e instituir outras espacialidades, outras cidades.
É o que posso apreender da vida que insiste em existir na conversa sentada no árido meio fio de algumas ruas, nas outras que se reconhece na espera do ônibus que demora tanto a passar, nos jogos de futebol das ruas fechadas a gol de chinelo, nos muros com porta para casa do vizinho, nos barracões de fundo, na casa construída com as próprias mãos contando com a ajuda de muitas outras, nas festas que nem pensam em acessar patrocínio. Existem através do ajuntamento de coisas e sujeitos indiferentes a qualquer legislação restritiva, na vila operária que sobrevive, como parte, mesmo que a contragosto de muitos, desse conjunto maior que se chama bairro.
Pois é essa vida, essa escala de cidade, essa interação olho no olho que a investida de um política patrimonial pode se apresentar enquanto valor positivo e gesto insurgente. Ao estabelecer que se recuperem as ruas calçadas em pé de moleque é contra o fluxo e a velocidade do carro e ela luta em favor das crianças que brincam nas ruas, dos idosos que nela atravessam e dos vizinhos que se gritam da janela. Ao estabelecer o replantio imediato de toda e qualquer árvore derrubada, além da qualidade do ar e da temperatura a ser experienciada, é a conversa no passeio e o passeio com o neném que ela busca. Ao proteger as praças e as vidas que nela se procriam é a interação entre as pessoas e os momentos de lazer e de ócio que ela faz lembrar. Ao proteger a visada da serra é um horizonte que ela nos oferece de presente, uma visão para além dos edifícios e do concreto, as curvas da serra, o germinar do dia e o contorno da lua que nela desponta.
Nas bordas do centro de Belo Horizonte, a uma distância possível de se percorrer à pé, através dos curtos passos de uma caminhada, atravessando olhares conhecidos, acenando com as mãos o cumprimento, desprendendo um afetuoso sorriso ou bocejando um preguiçoso “bom dia Seu Moacir”, encontra-se o bairro de Santa Tereza que graças, ainda hoje, insiste em existir.
por Priscila Musa e Rafael Barros
As políticas de patrimônio, já tão bem sedimentadas em nosso país, possuem raízes fincadas em terrenos longevos,
onde valores seculares, assentados em um determinado constructo histórico e com uma implicada proveniência sagrada, apartavam o homem comum do objeto ao qual buscavam vincular. Sua arquitetura não pressupunha uma relação existencial entre as pessoas e as coisas, sendo seu valor elaborado de forma arbitrário e sedimentado a partir de narrativas altamente aristocráticas. Uma herança da qual intenta se libertar.
Talvez seja esse um dos elementos a explicar por que até hoje o desenvolvimento das ações patrimoniais encontram tanta dificuldade em estabelecer um próximo e atento diálogo com os bens aos quais se busca aplicar. E, da mesma forma, como os sentimentos e entendimentos relacionados a esse campo de atuação são tão confusos e encontram, ainda hoje, tamanha resistência. Disso é preciso destacar, em princípio, duas observações: todo diálogo só se torna efetivo no tempo e com um atento exercício de escuta, deixando-se impregnar e modificar pelo discurso do outro e que todo bem cultural se constitui de corpo e espírito, é feito de matéria, mas também de afetos, fantasmas, como os quais, antes de tudo, é preciso lidar.
O presente ensaio, tomado aqui enquanto um processo inacabado, uma experiência exploratória sobre um universo incógnito, pareceu percorrer despretensiosamente as ruas de um antigo bairro belorizontino, que acabara, em seu conjunto, de ser alvo de uma ampla ação protetiva. A partir da interação, do jogo de descobertas e estranhamentos, fotógrafos e fotografados (aqui casas e seus moradores), se deparavam com a falta de entendimento do que tal intervenção política poderia provocar para a vida das pessoas ou em relação a um pensamento acerca da cidade. Fora esse o sentimento expresso pela maioria das pessoas que assistiram a face pública de suas moradias pousarem para essas fotografias. Eles, os fotógrafos, também moradores, mais do que desvendar, pareciam perder-se por terrenos desconhecidos.
A cidade é constituída por um conjunto descontinuo de forças que vão desde a presença e a ausência do poder público, às imposições e ao ordenamento do austero poder econômico, à disciplina belicosa do poder “político”, e ao comando violento daqueles que detêm o poder de ordenar a visibilidade e a discursividade. O ordenamento dos corpos perpassa o ordenamento do território; o espaço da cidade é também recortado em diferentes partes disciplinadas pela divisão dos lugares. Em meio a esses jogos de forças um certo gesto insurgente, precipitado pela política patrimonial, pode ser apreendido, mesmo diante de tantas idiossincrasias. Ao lutar contra a força imperiosa do mercado, que busca a todo o instante apagar, outras formas de vida, várias lembranças podem atrever-se a resistir.
Antes e para além de qualquer traço arquitetônico monumental e/ou significativo, ou de qualquer elemento histórico relevante, a discurssividade a fundamentar a proposta de proteção do conjunto urbano do bairro de Santa Tereza buscou alinhavar a história de pessoas comuns e de suas existências também comuns que resistiram na permanência, não intocada, de uma vida de bairro um tanto mais comunitária do que individualizada. O que essa proposta permite entrever através das fotografias, se encontra na dimensão e na escala das casas, na presença das árvores e dos jardins, das janelas e das portas rente às ruas, das muretas baixas e dos gradis que permitem o atravessamento do olhar, fazendo-se diluir, em certa medida, as fronteiras entre o público e o privado, entre o eu e os outros.
Ao se destruir uma casa, e nos acostumamos a perder essa dimensão, nos lembra César Guimarães, “matam-se os espaço da experiência sensível encarnada nas coisas, todos os cheiros, os valores, as marcas... Uma casa guarda inclusive aquilo que se desprendeu dos nossos corpos, a gordura que sai das mãos da crianças quando elas brincam nas paredes, uma casa guarda isso”. A resistência (existência) pode ser esse legado e essa herança. A memória daqueles que nela viveram, dos afetos que nela de desprenderam e a experiência concreta e contemporânea de uma espécie de vida em processo de extinção.
É o que expôs Maria Rita Kehl no texto Olhar no Olho do Outro, sobre a cidade do homem comum. A megalópole São Paulo são 12 milhões de cidades.
São 12 milhões de mapas sentimentais recortados pelas pequenas histórias da vida de seus habitantes. Cada homem comum tem a cidade que seus passos percorreram e que a imaginação inventou. Cada Homem comum possui secretamente, na imensidão esmagadora da cidade, os nichos que acolhem suas lembranças: memórias do vivido, fragmentos da precária identidade que o homem urbano consegue constituir. (KEHL, 2008: 293)
A Belo Horizonte metropolitana são 3 milhões de cidades, mas não nos enganemos. A cidade metáfora do progresso já de início engoliu o pequeno Curral Del Rey, fez desaparecer os nichos de muitos homens comuns do arraial sem ouro que por sorte ou infortúnio logrou sediar a nova capital de Minas. Em um primeiro momento os casarões e avenidas da nova capital sobrepuseram pequenas ruelas ladeadas de casebres e vendas de onde se via a vida passar aos passos lentos dos cavalos. Para quem estava habituado aos três metros e meio de largura das ruas de Ouro Preto, agora era preciso atravessar c i n q u e n t a longos metros para chegar até a porta do vizinho da frente. Em um segundo momento algumas avenidas foram alargadas e uma série de altos edifícios atropelou árvores, dividiu parques e praças, esmagou os então pequenos casarões e o vizinho se mudou para l o n g e.
Em um terceiro momento novas avenidas se espraiaram sobre as casas daqueles que construíram a cidade, seus lugares comuns, pequenas centralidades de comércio local desapareceram junto com rios, córregos, lagoas, praças, o centro precisava chegar até a grande lagoa artificial, precisava chegar até a cidade industrial. E assim segue, são cidades se sobrepondo a outras cidades, não sem violência, enquanto muitas e muitos ainda não conseguiram subir a primeira fiada de tijolos, as avenidas já ganharam o segundo andar.
Existe uma cidade recalcada, sim. Cidade das histórias que ninguém contou ou que ficaram esquecidas. Cidade das casas demolidas, da memória destruída, das referencias perdidas(...) A cidade recalcada é a história calada de suas populações: das migrações, das lutas cotidianas, dos conflitos políticos, greves, passeatas, manifestações permitidas ou reprimidas. Uma cidade esquecida, tanto quanto são esquecidos seus habitantes infames”- homens sem publicidade, cidadãos sem fama. A cidade recalcada guarda o segredo de alguns banhos de sangue, injustiças, sofrimentos solitários e coletivos. E também de alguns dias lindos, algumas vitórias felizes, festas coletivas, momentos de distensão e de festa. (KEHL, 2008: 295)
Na escala da vida ordinária, à altura do olho, a cidade é condicionada, e não submissa, à já mencionada relação de poderes e forças das instituições públicas, do poder econômico, do poder político, do poder social, do poder midiático - mas é também o que dessas forças escapa pelas bordas, o que delas resta, o que delas se apaga, o que delas não nos alcança. Mesmo nas condições mais inóspitas e duramente inumanas, há alguns pedaços de cidade que resistem na potência de suas frestas, de suas trincas. Há algo que consegue romper o ordenamento do tempo, do espaço e do corpo e instituir outras espacialidades, outras cidades.
É o que posso apreender da vida que insiste em existir na conversa sentada no árido meio fio de algumas ruas, nas outras que se reconhece na espera do ônibus que demora tanto a passar, nos jogos de futebol das ruas fechadas a gol de chinelo, nos muros com porta para casa do vizinho, nos barracões de fundo, na casa construída com as próprias mãos contando com a ajuda de muitas outras, nas festas que nem pensam em acessar patrocínio. Existem através do ajuntamento de coisas e sujeitos indiferentes a qualquer legislação restritiva, na vila operária que sobrevive, como parte, mesmo que a contragosto de muitos, desse conjunto maior que se chama bairro.
Pois é essa vida, essa escala de cidade, essa interação olho no olho que a investida de um política patrimonial pode se apresentar enquanto valor positivo e gesto insurgente. Ao estabelecer que se recuperem as ruas calçadas em pé de moleque é contra o fluxo e a velocidade do carro e ela luta em favor das crianças que brincam nas ruas, dos idosos que nela atravessam e dos vizinhos que se gritam da janela. Ao estabelecer o replantio imediato de toda e qualquer árvore derrubada, além da qualidade do ar e da temperatura a ser experienciada, é a conversa no passeio e o passeio com o neném que ela busca. Ao proteger as praças e as vidas que nela se procriam é a interação entre as pessoas e os momentos de lazer e de ócio que ela faz lembrar. Ao proteger a visada da serra é um horizonte que ela nos oferece de presente, uma visão para além dos edifícios e do concreto, as curvas da serra, o germinar do dia e o contorno da lua que nela desponta.
Nas bordas do centro de Belo Horizonte, a uma distância possível de se percorrer à pé, através dos curtos passos de uma caminhada, atravessando olhares conhecidos, acenando com as mãos o cumprimento, desprendendo um afetuoso sorriso ou bocejando um preguiçoso “bom dia Seu Moacir”, encontra-se o bairro de Santa Tereza que graças, ainda hoje, insiste em existir.