Quanto tempo dura uma entrevista, uma pesquisa, um bairro? Horas, meses, centenas de anos. Perguntas que nos fizemos à medida que descobrimos novos limites e transbordamentos que não pertencem aos mapas oficiais. Fomos em busca das cartografias afetivas e o que encontramos foram memórias apagadas, esquecidas, histórias de descabimento.
Descobrimos, por entre ruas e portas adentro, que os bairros duram mais nas pessoas que nos registros. E que há bairros inteiros dentro de cada um – mesmo quando a cidade é cúmplice do soterramento de lembranças de certa parte da população.
Descobrimos um bairro de topografia acidentada, viadutos e desvios bruscos, ruas apertadas de mão única, perspectivas vertiginosas, terreiros, encruzilhadas, bifurcações e súbitas travessias. Onde choro, samba e gargalhadas ritmavam a vida em múltiplos bares, dancing clubs, motéis e mitos sem fim. Há quem diga que ele já chegou rompendo padrões (e pedreiras), meio trôpego, meio boêmio, meio tombando, meio tombado. Tombado? Só se for pelas más-línguas de quem não o olha nos olhos, ou finge não ver a humanidade de suas ruínas e personas. Lagoinha nasceu das águas, das pedras, das eiras sem beiras, de gente que ajudou a abrir as alas (e as ruas) para a nova capital de Minas passar.
“Os construtores deste bairro vieram de outros países, da Itália. Esse bairro foi todo italiano. Tem os Prosdocimo, tem os Vanucci, os Satinette. É muito. Foram os primeiros que trouxeram o progresso pro nosso bairro”. É o que conta Helcy Pereira, de 85 anos, que vive desde o nascimento na Rua Além Paraíba. Com os italianos vieram também suas tendências arquitetônicas e casarões nos estilos art déco, neoclássico e eclético foram espalhados pela região central de Belo Horizonte e também por alguns bairros, como a Lagoinha.
O progresso era o mote na época da construção da cidade. No século seguinte, moradores viram várias dessas casas serem derrubadas, enquanto o bairro era coberto por cimento e tomava pra si a alcunha de seu conjunto de viadutos: Complexo (da) Lagoinha. Por mais que muitos o definam como um bairro de passagem, especialmente para carros, para compreender a Lagoinha, há de adentrar seus muros e transbordar o que há de concreto; há de habitá-la para sentir o que flui por seus poros de uma dureza (e de uma beleza) particular.
Como não admirar, por exemplo, o que se encontra para além das belas fachadas (e modos de viver) que ainda resistem? A casa de Helcy, que é Dona Cicica para os amigos do bairro, ainda mantém diversos aspectos do tempo em que foi construída. “Esta casa ficou pronta em 12 de setembro de 1912. E aqui nós estamos até hoje. Cento e sete anos de construção”, diz, orgulhosa.
“Meus pais vieram pra cá em 1910, por aí. Outro registro fala que o terreno foi comprado nos idos de 1900 e poucos. Eles vieram de Soares, um vilarejo entre Itabirito e Cachoeira do Campo, município de Ouro Preto. Meu avô tinha um grande comércio no arraial. Aí ele sempre dizia: ‘ô, meu Deus, sou doido pra ir pra BH’. Então meu pai falou pra ele: ‘ô, pai, deixa eu ir primeiro e depois que eu ajeitar você vai também’. Ele só tinha o quarto ano primário. E veio”.
O pai de Dona Cicica trabalhou como carroceiro e transportava encomendas da Estação [Ferroviária] para as lojas da capital, mas faleceu quando ela ainda era bebê. “Minha mãe criava galinha e ovos, pra vender, pra ajudar nas despesas, né. Aí teve um dia que meu irmão falou: ‘mãe, vamos criar cabra? O pessoal no mercado tá me perguntando se a gente não cria cabritinha. Eles estão doidos pra comprar uma cabritinha’. Aí meu irmão comprou dois casais e deu uma produção boa. Nós mesmos fomos criados com leite de cabra. Aqui era uma pequena fazendinha. Tinha tudo quanto é fruta. Só de manga tinha 10 pés! Tinha banana, goiaba, figo, laranja, mexerica, ameixa, pé de cana, jambo, pitanga”. Dona Cicica diz que a família também chegou a criar porcos e galinhas-d’angola e que a casa tinha uma fornalha de pedra.
Ela diz que o nome do Lagoinha se deu por conta de um córrego que vinha da Pampulha, pela Avenida Antônio Carlos.
“Ao largo dele iam formando umas lagoinhas, mesmo, lagoas pequenininhas. E vinha uma quantidade de piabinhas que a gente ia, pegava com a lata e trazia pra casa na esperança de sobreviver. Minha mãe falava: ‘não adianta, elas não crescem. É piabinha de limpar, fritar e comer torradinha’. Juntava a meninada toda pra Antônio Carlos, neste trecho aqui, pra pegar as piabinhas, esperando que elas iam crescer igual peixe”, conta rindo, enquanto serve um delicioso arroz-doce com canela.
A vizinha dela, Maria das Graças Moraes Xavier, a Dona Graça, também comemora o fato de morar em um bairro que permite uma vida quase de interior.
“Quem vem aqui fala que depois que entra pela porta parece que tá passando por um portal. Minha casa é de 1919, tem fogão a lenha e até fevereiro agora tinha até galinheiro. Tive que tirar, mas meu fogão a lenha permanece. Tenho três gaiolas de passarinhos, três cachorros, quatro gatos. Eu gosto das minhas criações. Já tem 40 anos que moro na Lagoinha e aqui ainda tem muita coisa antiga. Aqui a gente senta na porta de casa pra conversar. Ainda tem uma padaria que fabrica pão como antigamente, pão de quilo, sabe?”, celebra Dona Graça.
Foi ela que nos levou até a casa de Dona Cicica. As duas são comadres de longa data e suas percepções sobre o bairro se cruzam em diversos pontos. Por conta das antigas casas de prostituição, dos bares, da formação de favelas e da reunião de pessoas em situação de rua, abandonadas pelo Estado, a Lagoinha passou a imprimir um imaginário de bairro perigoso, mas as vizinhas dizem que nunca se sentiram ameaçadas por ninguém ali.
Dona Graça diz que, além das festas e carnavais, o bairro também tinha forte tradição futebolística e religiosa, que se mantém até hoje. “O Santuário de Nossa Senhora da Conceição dos Pobres tem muito movimento na época do dia 8 de dezembro. Eu participava muito da igreja, era da Legião de Maria, Coração de Jesus, fritava pastel nas novenas, no dia 8 eu ajudava a cozinhar pras barraquinhas. Até hoje, sendo evangélica, eu ajudo. Deus é um só”.
Ela veio morar no bairro quando tinha 19 anos. O marido dela foi chamado para trabalhar como mecânico em uma fábrica de massas bem conhecida, na época: a Orion. E ela também foi contratada.
“No primeiro dia que eu fui trabalhar na Orion, em 1974, eu passei dentro da zona. Aí eu perguntei pra um policial assim: ‘ô, moço, onde é a Rua Bonfim, 280?’ Aí ele disse assim: ‘ô, dona, cê sobe aqui, minha filha, que aqui não é lugar, tá muito cedo pra você estar aqui. Aqui é zona’. Aí eu disse: ‘muito obrigada, moço, eu sou do interior e não sei andar aqui direito’. Trabalhei na Orion um ano e quatro meses e ninguém me incomodou. Tinha umas luzes vermelhas, mulheres com roupas decotadas. A gente passava depressa, porque dizem que elas cortavam a gente com navalha se a gente olhasse muito pra elas. Elas não gostavam, não”.
A região era movimentada e à noite as ruas ficavam repletas de gente: artistas, intelectuais e políticos, como conta Dona Cicica: “o bairro, no meu tempo, da minha juventude, era uma mulherada, tinha uma rua de prostituição. A praça [Vaz de Melo], em si, tinha uma coisa só de prostituição, tinha aquelas mulheres bêbadas, aqueles homens bêbados. Mas eles jamais dirigiram um gracejo pra gente”. Ela diz que Juscelino Kubitschek ia muito ao bairro. “Você acredita que ele passava no meio da praça, abria o carro e falava pro segurança: ‘não quero ninguém atrás de mim. Aqui tô no meio do meu povo. Este é meu verdadeiro povo, o povo brasileiro, simples, humilde. Bebem suas pingas, mas não caçam confusão com ninguém’. Eu parava, no almoço, e ficava olhando. Ele abraçava, beijava o povo. E falava: ‘pode ir lá comer e beber umas pinguinhas’. Teve um dia que ele falou comigo: ‘você tá me espionando’? E eu disse: ‘não, tô vendo como você trata as pessoas’. Ele disse: ‘são gente que nem nós’. E ainda fez assim (sinal negativo) com a mãozinha”.
A Praça Vaz de Melo era um quarteirão entre a ferrovia e a Avenida Antônio Carlos, mas foi destruída dando origem a um samba (e muitos choros e saudades). “Adeus Lagoinha, adeus”, de Gervásio Horta, canta assim: “estão levando o que resta de mim. Dizem que é a força do progresso. Um minuto eu peço para ver seu fim”.
Dona Cicica diz que viu o bairro mudar de cara muitas vezes.
“A Lagoinha mudou muito. De primeiro, as ruas eram sem calçamento, todas as casas eram cercadas de arame farpado. Depois, foi chegando o progresso, aí veio o calçamento. Mais ou menos em 1940, 1945 os muros começaram a subir. Até o ano de 1940 começaram a colocar lotação. Mas a maior parte era no pezinho mesmo, né, andando, atravessando a passarela”.
Pelo fato de a Lagoinha representar uma importante ligação entre o Centro e o vetor norte de BH, a região tem passado constantemente por intervenções urbanísticas, ao longo da história. A maioria delas tem o carro como protagonista, o que acabou por ir anulando alguns espaços de lazer e comércios que ofereciam mais comodidade para os moradores. Lugares representativos do bairro, como a Feira de Amostras e o ginásio do Paissandu, foram demolidos para receber a rodoviária, fundada em 1971.
Depois foi a vez do Mercado Mauá e do Cine São Geraldo, também nos anos 1970. A Lagoinha era um canteiro de obras. “Quando vim pra cá, o IAPI já existia. Lembro da passarela da rodoviária e de quando desativaram a Feira dos Produtores… era uma feira muito boa. A gente ia lá comprar direto e tivemos que passar a comprar em outro lugar. Tinha açougue, carne, relojoaria. Tinha uma relojoaria que chamava Fantini. Quando eu fiquei noiva, meu marido comprou nossa aliança lá”, relembra Dona Graça.
A comadre, Dona Cicica, diz que gostava, mesmo, era da Feira de Amostras: “era ótima! Ficava onde hoje é a rodoviária. A gente ia lá à noite. Tinha amostras de tudo que Minas Gerais tinha. Coisas muito boas. Cristais, diamantes, minério, de tudo”.
As duas reclamam que muitos comércios foram deixando o bairro e que hoje precisam sair da Lagoinha para fazer as compras. “Aqui é perto de tudo, né. O foco da Lagoinha é isso. Se você precisar ir pro Parque Municipal, pra Praça da Liberdade, você vai a pé, mas para os comércios é um ‘perto longe’. Em outros bairros tem tudo perto. Muita variedade, padarias. A gente aqui, não. Não tem supermercado direito. Pra comprar uma coisa você não demora menos de 40 minutos pra ir e voltar. E aqui tudo é a pé. Quem não tem carro anda a pé, né”, lamenta Dona Graça.
Quando jovens, as duas contam que também andavam muito a pé e Dona Cicica ri ao dizer que o footing na Rua Itapecerica era a sensação, mais pra paquerar que pra fazer exercício. “A moçada colocava a mini saia e ia. Nós éramos jovens demais pra querer casar cedo. Eu não! A gente via o sofrimento da minha mãe”.
Além do footing, a juventude de Dona Cicica também foi marcada pelas serenatas. “Já recebi muita serenata aqui em casa. A turma recebia muita serenata. Dos 1964 pra cá. Todo mundo com namoradinho, né. Os namorados vinham com o violão. A turma era grande, a gente ouvia o violãozinho na madrugada. Chegava na janela pra ouvir… Mas convidar pra entrar não podia. Eles tocavam aquelas modinhas antigas, era cada modinha linda, linda”.
Muitas lembranças boas, mas a Lagoinha também soube protagonizar momentos difíceis, que, com o descaso do Estado, não desapareceram. Localizado na região noroeste de Belo Horizonte, o bairro se desenvolveu nas margens do Ribeirão Arrudas e do córrego do Pastinho e era um local frequentemente afetado pelas enchentes, como lembram Dona Cicica e Dona Graça. “Tinha uma ponte sobre o Rio Arrudas pra gente passar. Depois, deu uma bela chuva e carregou tudo. E a gente passava na ponte de madeira”, conta Dona Cicica. E Dona Graça acrescenta: “a única coisa que eu lembro quando teve essa tromba d´água foi que passou de tudo aqui: geladeira, cama, guarda-roupas... parecia um mar de água aqui, descendo. O bombeiro que estava socorrendo o pessoal, até o pai dele desceu na enxurrada. Deve ter uns 30 anos isso. Nunca vi a correnteza da água assim. Era um mar. A gente desceu pra ver os estragos e chocou todo mundo. A gente ficou com medo de a água invadir e destruir a igreja, mas chegou só na Antônio Carlos”.
De lá pra cá, a situação não mudou muito. Há dois anos, elas viram a rua em que moram, Além Paraíba, ficar alagada por conta das chuvas e do descaso do poder público. Apesar do reconhecido valor histórico-cultural do bairro, um dos mais antigos de Belo Horizonte, grande parte das vias e das edificações da Lagoinha apresentam um progressivo estado de degradação - ainda que se fale muito sobre conservação após o tombamento de parte das casas como patrimônio da cidade.
Dona Graça ainda tem esperanças de que o bairro possa ser transformado, mas não esconde a tristeza de presenciar a Lagoinha descendo ladeira: “o bairro é a gente que faz. Por ser tombado, a prefeitura deveria cuidar mais dos casarões. E não cuida. Olha que construção bonita aqui na frente. Tinha que cuidar, pra conservar. A história da Lagoinha vem destas casas aí”.
Quanto tempo dura uma entrevista, uma pesquisa, um bairro? Horas, meses, centenas de anos. Perguntas que nos fizemos à medida que descobrimos novos limites e transbordamentos que não pertencem aos mapas oficiais. Fomos em busca das cartografias afetivas e o que encontramos foram memórias apagadas, esquecidas, histórias de descabimento.
Descobrimos, por entre ruas e portas adentro, que os bairros duram mais nas pessoas que nos registros. E que há bairros inteiros dentro de cada um – mesmo quando a cidade é cúmplice do soterramento de lembranças de certa parte da população.
Descobrimos um bairro de topografia acidentada, viadutos e desvios bruscos, ruas apertadas de mão única, perspectivas vertiginosas, terreiros, encruzilhadas, bifurcações e súbitas travessias. Onde choro, samba e gargalhadas ritmavam a vida em múltiplos bares, dancing clubs, motéis e mitos sem fim. Há quem diga que ele já chegou rompendo padrões (e pedreiras), meio trôpego, meio boêmio, meio tombando, meio tombado. Tombado? Só se for pelas más-línguas de quem não o olha nos olhos, ou finge não ver a humanidade de suas ruínas e personas. Lagoinha nasceu das águas, das pedras, das eiras sem beiras, de gente que ajudou a abrir as alas (e as ruas) para a nova capital de Minas passar.
“Os construtores deste bairro vieram de outros países, da Itália. Esse bairro foi todo italiano. Tem os Prosdocimo, tem os Vanucci, os Satinette. É muito. Foram os primeiros que trouxeram o progresso pro nosso bairro”. É o que conta Helcy Pereira, de 85 anos, que vive desde o nascimento na Rua Além Paraíba. Com os italianos vieram também suas tendências arquitetônicas e casarões nos estilos art déco, neoclássico e eclético foram espalhados pela região central de Belo Horizonte e também por alguns bairros, como a Lagoinha.
O progresso era o mote na época da construção da cidade. No século seguinte, moradores viram várias dessas casas serem derrubadas, enquanto o bairro era coberto por cimento e tomava pra si a alcunha de seu conjunto de viadutos: Complexo (da) Lagoinha. Por mais que muitos o definam como um bairro de passagem, especialmente para carros, para compreender a Lagoinha, há de adentrar seus muros e transbordar o que há de concreto; há de habitá-la para sentir o que flui por seus poros de uma dureza (e de uma beleza) particular.
Como não admirar, por exemplo, o que se encontra para além das belas fachadas (e modos de viver) que ainda resistem? A casa de Helcy, que é Dona Cicica para os amigos do bairro, ainda mantém diversos aspectos do tempo em que foi construída. “Esta casa ficou pronta em 12 de setembro de 1912. E aqui nós estamos até hoje. Cento e sete anos de construção”, diz, orgulhosa.
“Meus pais vieram pra cá em 1910, por aí. Outro registro fala que o terreno foi comprado nos idos de 1900 e poucos. Eles vieram de Soares, um vilarejo entre Itabirito e Cachoeira do Campo, município de Ouro Preto. Meu avô tinha um grande comércio no arraial. Aí ele sempre dizia: ‘ô, meu Deus, sou doido pra ir pra BH’. Então meu pai falou pra ele: ‘ô, pai, deixa eu ir primeiro e depois que eu ajeitar você vai também’. Ele só tinha o quarto ano primário. E veio”.
O pai de Dona Cicica trabalhou como carroceiro e transportava encomendas da Estação [Ferroviária] para as lojas da capital, mas faleceu quando ela ainda era bebê. “Minha mãe criava galinha e ovos, pra vender, pra ajudar nas despesas, né. Aí teve um dia que meu irmão falou: ‘mãe, vamos criar cabra? O pessoal no mercado tá me perguntando se a gente não cria cabritinha. Eles estão doidos pra comprar uma cabritinha’. Aí meu irmão comprou dois casais e deu uma produção boa. Nós mesmos fomos criados com leite de cabra. Aqui era uma pequena fazendinha. Tinha tudo quanto é fruta. Só de manga tinha 10 pés! Tinha banana, goiaba, figo, laranja, mexerica, ameixa, pé de cana, jambo, pitanga”. Dona Cicica diz que a família também chegou a criar porcos e galinhas-d’angola e que a casa tinha uma fornalha de pedra.
Ela diz que o nome do Lagoinha se deu por conta de um córrego que vinha da Pampulha, pela Avenida Antônio Carlos.
“Ao largo dele iam formando umas lagoinhas, mesmo, lagoas pequenininhas. E vinha uma quantidade de piabinhas que a gente ia, pegava com a lata e trazia pra casa na esperança de sobreviver. Minha mãe falava: ‘não adianta, elas não crescem. É piabinha de limpar, fritar e comer torradinha’. Juntava a meninada toda pra Antônio Carlos, neste trecho aqui, pra pegar as piabinhas, esperando que elas iam crescer igual peixe”, conta rindo, enquanto serve um delicioso arroz-doce com canela.
A vizinha dela, Maria das Graças Moraes Xavier, a Dona Graça, também comemora o fato de morar em um bairro que permite uma vida quase de interior.
“Quem vem aqui fala que depois que entra pela porta parece que tá passando por um portal. Minha casa é de 1919, tem fogão a lenha e até fevereiro agora tinha até galinheiro. Tive que tirar, mas meu fogão a lenha permanece. Tenho três gaiolas de passarinhos, três cachorros, quatro gatos. Eu gosto das minhas criações. Já tem 40 anos que moro na Lagoinha e aqui ainda tem muita coisa antiga. Aqui a gente senta na porta de casa pra conversar. Ainda tem uma padaria que fabrica pão como antigamente, pão de quilo, sabe?”, celebra Dona Graça.
Foi ela que nos levou até a casa de Dona Cicica. As duas são comadres de longa data e suas percepções sobre o bairro se cruzam em diversos pontos. Por conta das antigas casas de prostituição, dos bares, da formação de favelas e da reunião de pessoas em situação de rua, abandonadas pelo Estado, a Lagoinha passou a imprimir um imaginário de bairro perigoso, mas as vizinhas dizem que nunca se sentiram ameaçadas por ninguém ali.
Dona Graça diz que, além das festas e carnavais, o bairro também tinha forte tradição futebolística e religiosa, que se mantém até hoje. “O Santuário de Nossa Senhora da Conceição dos Pobres tem muito movimento na época do dia 8 de dezembro. Eu participava muito da igreja, era da Legião de Maria, Coração de Jesus, fritava pastel nas novenas, no dia 8 eu ajudava a cozinhar pras barraquinhas. Até hoje, sendo evangélica, eu ajudo. Deus é um só”.
Ela veio morar no bairro quando tinha 19 anos. O marido dela foi chamado para trabalhar como mecânico em uma fábrica de massas bem conhecida, na época: a Orion. E ela também foi contratada.
“No primeiro dia que eu fui trabalhar na Orion, em 1974, eu passei dentro da zona. Aí eu perguntei pra um policial assim: ‘ô, moço, onde é a Rua Bonfim, 280?’ Aí ele disse assim: ‘ô, dona, cê sobe aqui, minha filha, que aqui não é lugar, tá muito cedo pra você estar aqui. Aqui é zona’. Aí eu disse: ‘muito obrigada, moço, eu sou do interior e não sei andar aqui direito’. Trabalhei na Orion um ano e quatro meses e ninguém me incomodou. Tinha umas luzes vermelhas, mulheres com roupas decotadas. A gente passava depressa, porque dizem que elas cortavam a gente com navalha se a gente olhasse muito pra elas. Elas não gostavam, não”.
A região era movimentada e à noite as ruas ficavam repletas de gente: artistas, intelectuais e políticos, como conta Dona Cicica: “o bairro, no meu tempo, da minha juventude, era uma mulherada, tinha uma rua de prostituição. A praça [Vaz de Melo], em si, tinha uma coisa só de prostituição, tinha aquelas mulheres bêbadas, aqueles homens bêbados. Mas eles jamais dirigiram um gracejo pra gente”. Ela diz que Juscelino Kubitschek ia muito ao bairro. “Você acredita que ele passava no meio da praça, abria o carro e falava pro segurança: ‘não quero ninguém atrás de mim. Aqui tô no meio do meu povo. Este é meu verdadeiro povo, o povo brasileiro, simples, humilde. Bebem suas pingas, mas não caçam confusão com ninguém’. Eu parava, no almoço, e ficava olhando. Ele abraçava, beijava o povo. E falava: ‘pode ir lá comer e beber umas pinguinhas’. Teve um dia que ele falou comigo: ‘você tá me espionando’? E eu disse: ‘não, tô vendo como você trata as pessoas’. Ele disse: ‘são gente que nem nós’. E ainda fez assim (sinal negativo) com a mãozinha”.
A Praça Vaz de Melo era um quarteirão entre a ferrovia e a Avenida Antônio Carlos, mas foi destruída dando origem a um samba (e muitos choros e saudades). “Adeus Lagoinha, adeus”, de Gervásio Horta, canta assim: “estão levando o que resta de mim. Dizem que é a força do progresso. Um minuto eu peço para ver seu fim”.
Dona Cicica diz que viu o bairro mudar de cara muitas vezes.
“A Lagoinha mudou muito. De primeiro, as ruas eram sem calçamento, todas as casas eram cercadas de arame farpado. Depois, foi chegando o progresso, aí veio o calçamento. Mais ou menos em 1940, 1945 os muros começaram a subir. Até o ano de 1940 começaram a colocar lotação. Mas a maior parte era no pezinho mesmo, né, andando, atravessando a passarela”.
Pelo fato de a Lagoinha representar uma importante ligação entre o Centro e o vetor norte de BH, a região tem passado constantemente por intervenções urbanísticas, ao longo da história. A maioria delas tem o carro como protagonista, o que acabou por ir anulando alguns espaços de lazer e comércios que ofereciam mais comodidade para os moradores. Lugares representativos do bairro, como a Feira de Amostras e o ginásio do Paissandu, foram demolidos para receber a rodoviária, fundada em 1971.
Depois foi a vez do Mercado Mauá e do Cine São Geraldo, também nos anos 1970. A Lagoinha era um canteiro de obras. “Quando vim pra cá, o IAPI já existia. Lembro da passarela da rodoviária e de quando desativaram a Feira dos Produtores… era uma feira muito boa. A gente ia lá comprar direto e tivemos que passar a comprar em outro lugar. Tinha açougue, carne, relojoaria. Tinha uma relojoaria que chamava Fantini. Quando eu fiquei noiva, meu marido comprou nossa aliança lá”, relembra Dona Graça.
A comadre, Dona Cicica, diz que gostava, mesmo, era da Feira de Amostras: “era ótima! Ficava onde hoje é a rodoviária. A gente ia lá à noite. Tinha amostras de tudo que Minas Gerais tinha. Coisas muito boas. Cristais, diamantes, minério, de tudo”.
As duas reclamam que muitos comércios foram deixando o bairro e que hoje precisam sair da Lagoinha para fazer as compras. “Aqui é perto de tudo, né. O foco da Lagoinha é isso. Se você precisar ir pro Parque Municipal, pra Praça da Liberdade, você vai a pé, mas para os comércios é um ‘perto longe’. Em outros bairros tem tudo perto. Muita variedade, padarias. A gente aqui, não. Não tem supermercado direito. Pra comprar uma coisa você não demora menos de 40 minutos pra ir e voltar. E aqui tudo é a pé. Quem não tem carro anda a pé, né”, lamenta Dona Graça.
Quando jovens, as duas contam que também andavam muito a pé e Dona Cicica ri ao dizer que o footing na Rua Itapecerica era a sensação, mais pra paquerar que pra fazer exercício. “A moçada colocava a mini saia e ia. Nós éramos jovens demais pra querer casar cedo. Eu não! A gente via o sofrimento da minha mãe”.
Além do footing, a juventude de Dona Cicica também foi marcada pelas serenatas. “Já recebi muita serenata aqui em casa. A turma recebia muita serenata. Dos 1964 pra cá. Todo mundo com namoradinho, né. Os namorados vinham com o violão. A turma era grande, a gente ouvia o violãozinho na madrugada. Chegava na janela pra ouvir… Mas convidar pra entrar não podia. Eles tocavam aquelas modinhas antigas, era cada modinha linda, linda”.
Muitas lembranças boas, mas a Lagoinha também soube protagonizar momentos difíceis, que, com o descaso do Estado, não desapareceram. Localizado na região noroeste de Belo Horizonte, o bairro se desenvolveu nas margens do Ribeirão Arrudas e do córrego do Pastinho e era um local frequentemente afetado pelas enchentes, como lembram Dona Cicica e Dona Graça. “Tinha uma ponte sobre o Rio Arrudas pra gente passar. Depois, deu uma bela chuva e carregou tudo. E a gente passava na ponte de madeira”, conta Dona Cicica. E Dona Graça acrescenta: “a única coisa que eu lembro quando teve essa tromba d´água foi que passou de tudo aqui: geladeira, cama, guarda-roupas... parecia um mar de água aqui, descendo. O bombeiro que estava socorrendo o pessoal, até o pai dele desceu na enxurrada. Deve ter uns 30 anos isso. Nunca vi a correnteza da água assim. Era um mar. A gente desceu pra ver os estragos e chocou todo mundo. A gente ficou com medo de a água invadir e destruir a igreja, mas chegou só na Antônio Carlos”.
De lá pra cá, a situação não mudou muito. Há dois anos, elas viram a rua em que moram, Além Paraíba, ficar alagada por conta das chuvas e do descaso do poder público. Apesar do reconhecido valor histórico-cultural do bairro, um dos mais antigos de Belo Horizonte, grande parte das vias e das edificações da Lagoinha apresentam um progressivo estado de degradação - ainda que se fale muito sobre conservação após o tombamento de parte das casas como patrimônio da cidade.
Dona Graça ainda tem esperanças de que o bairro possa ser transformado, mas não esconde a tristeza de presenciar a Lagoinha descendo ladeira: “o bairro é a gente que faz. Por ser tombado, a prefeitura deveria cuidar mais dos casarões. E não cuida. Olha que construção bonita aqui na frente. Tinha que cuidar, pra conservar. A história da Lagoinha vem destas casas aí”.